Desde que me
escreveste que o percurso foi agitado. Física, mental e espiritualmente. Um
carrossel cuja paisagem envolvente muda a toda a hora.
Sempre que acho
que mudei (para melhor) faço algo que me relembra que ainda sou a mesma miúda
perdida do ano passado. Não que isso seja com ações significativas, nem tão
pouco semelhantes àquelas que foram do conhecimento geral. Não… nada de
exposto, nada de físico sequer. Tão pouco de preocupante. É apenas um clicar na
minha mente que me lembra que (ainda) não estou bem. Se calhar nunca vou estar
– e se calhar isso é o certo. Se calhar a minha essência é esta: à deriva… às
vezes à tona, às vezes no fundo. Com ondas de felicidade e com vagas de
melancolia, com nuances de uma desmotivação e desinteresse que me fazem
perguntar quem sou, onde está a Inês de antes, que fascinava as pessoas e as
fazia ver em mim um potencial que agora não reconheço. Às vezes acho que a
minha força ficou no chão daquele quintal. Mas depois lembro-me que eu
saí de lá. Estou de pé – pelos outros, e mais recentemente, por mim. Tropeço às
vezes, mas nunca sei se chego ou não a tombar.
A Alice… ela
será sempre parte de mim. Havia uma Inês antes de haver Alice, mas não sei se
haverá alguma vez outra vez apenas a Inês. Eu acho que não. Às vezes a Alice
abraça-me com tanta força que me soa a sufoco, outras vezes, coabitamos
pacificamente no mesmo corpo.
E tens razão
quando dizes que o meu problema sempre foi de sensibilidade…
aliás, é mais que isso, é uma fome inesgotável de experiência, uma luta pela
liberdade que acho que nunca chego a ganhar. As dúvidas são idênticas, a
vontade de fugir é tanta quanto antes. A necessidade de escape não fugiu.
Apenas encontrei outras formas de me ausentar – mais saudáveis, menos
perigosas. Escrever é uma delas. Manter-me ocupada. Fazer o máximo que consigo
pelos outros. E não é máscara, não sou eu a fugir aos problemas. É terapia. É
cura.
Continuo sem encontrar sentido para este mundo, para esta humanidade,
para estas pessoas, e para esta Alma em que me metamorfoseio. A única resposta
que encontro é que o problema não está na abordagem, mas na origem: nos
pensamentos, os que pesam, os que não me deixam dormir, os que não me deixam
estudar, os que não me deixam sossegar. Por algum motivo o Livro do
Desassossego está sempre na minha mesa de cabeceira. Por algum motivo me sinto
mais próxima da minha pessoa quando leio Pessoa. Sinceramente, acho que a
resposta nunca chegará. A parte boa é que isso me mantém à procura. Talvez não
seja tão errado assim.
Continuo a viver
num mundo que me soa tão estranho quanto a ti. Não sei bem se vivo mais na
fantasia ou na realidade, nem o que será menos doloroso. No entanto, isto não é
uma carta triste. A felicidade é sobrevalorizada, de qualquer maneira, na minha
ótica. É um sentimento como outro qualquer. Felicidade, tristeza, saudade,
melancolia, entusiasmo, excitação… é tudo instantâneo, de curto prazo e todos
estes aspectos devem ser vividos. Não quero estar feliz sempre. Mas vou sempre
ter a personalidade contente vigiada por uma alma triste.
Há coisas que
doem e vão doer sempre mas eu encontro beleza na tristeza. Danos colaterais. Por
algum motivo continuo inconscientemente a rodear-me de pessoas que acho que
posso salvar. Exausto da vida? Mesmo o meu tipo. A ansiedade acompanha-te à
noite? Vamos ser amigos. Será que se os salvar a eles, liberto-me a mim? Ou
acabo por sugar os problemas dos outros para o meu próprio núcleo, e com eles,
a minha energia toda?
“A satisfação
provém da luta.” Prometo continuar a lutar. E apesar de ir ao chão tantas
vezes, vou manter o escudo baixo. Só assim se reconhecem amigos no lado que
julgávamos inimigo. Vou manter o escudo baixo porque o que nos é desconhecido
não tem de ser sinónimo de nocivo. Manter o espírito aberto ao que vier.
“O que se passou está bem…” nos dias em
que lhe reconheço ensinamento. Crescimento. O que se passou está mal nos dias
em que só vejo o dano que causei.
“O que eu sou está bem…” nos dias em que
me aceito e reconheço. O que sou está mal quando deixo que a Alice tome posse integral
e me tolde o discernimento.
“Ela está bem…” Ferida… pela
vida… por mim, mas bem. Eu tento. Pagarei para sempre a dívida dos meus crimes,
mas é uma fatura que me voluntario a restituir. Ela merece.
Há frio e
quente. Há prazer e dor. Há certo e errado, mas as linhas são ténues. “Não sou
bem nem mal, sempre fui só plural”. Somos o que somos, não somos o que fomos.
Somos o que ainda não somos. Somos o quanto isso dói e somos o quanto isso nos
faz feliz. Podemos não ser aquilo que ainda não somos, mas somos sempre mais
aquilo que aspiramos a ser.
Sabes, há coisas
más que acontecem e passam. Há outras que magoam todos os dias. Acho que aquele
compasso de tempo se insere na segunda categoria. Ainda estou a aprender a
lidar com isso, a toda a hora. Aliás, senão não estaria a escrever-te isto
agora. O meu passado invade-me o presente e se por um lado, lamento, por outro,
agradeço.
Às vezes sinto
que as minhas escolhas me batem mais à porta do que as opções dos outros lhes
batem às suas campainhas. Eu às vezes queria um dia sozinha em casa, sabes?
Os
meus erros relembram-me que existem cada vez que olho para as minhas cicatrizes.
Os meus erros relembram-me que existem cada vez que não aguento mais
de uma hora a andar.
Os meus erros relembram-me que existem cada vez que não
posso arranjar um emprego normal numa loja de roupa comum.
Os meus erros
relembram-me que existem cada vez que quero correr e não posso.
E, nos dias
maus, eu só queria ser uma pessoa normal – o que quer que seja que isso
signifique. Só queria poder fazer o que toda a gente faz. Só queria pousar a
cabeça na almofada à noite e não ter aquele dia de setembro a passar-me em
revista à frente dos olhos, como uma história de embalar. Só queria dormir e
não sonhar que estou a cair eternamente como a Alice no buraco. Só queria não
escrever sobre isto a toda a hora, queria não falar disto a toda a hora mas nos
dias maus eu não sei calar(-me).
Mas ao mesmo
tempo… há sempre alguém a ouvir. Mas ao mesmo tempo…
Os meus erros relembram-me
que resisti. Os meus erros relembram-me que tive uma família que nunca saiu da
minha cabeceira.
Os meus erros relembram-me que tive amigos que viram tudo e
não foram embora.
Os meus erros relembram-me que conheci pessoas novas
que, apesar de saberem a narrativa, não aceitam que ela seja de alguém como eu.
Não é essa a Inês que eles veem.
E nos dias bons eu não quero ser uma pessoa
normal. Os meus erros relembram-me que podes começar de novo. Nos dias bons eu
quero ser esta pessoa, esta Alma dorida neste corpo vencido, que se regenera na
hora a seguir. E por mais que mudar de morada não deixe a casa que levo às
costas lá atrás, deu-me um recomeço.
A Alice, não é nem o que eu gostava de ser, nem é o que eu
sou. Ela continua a ser parte intrínseca de mim, quer eu queira, quer não. Mas
não é o meu eu na totalidade, nem eu seria eu sem ela. Só assim sou fiel a mim
mesma. Só assim sou real.
E portanto,
quanto ao passado… há dias em que vivo nele. Mas noutros, nos em que ele apenas
vive em mim, ele relembra-me que não devo tentar passar-lhe uma borracha por
cima, mas sim escrevê-lo a caneta. Pois isto é só uma história e não A Minha
História. Essa, ainda está a ser escrita. E um dia vou lê-la, e aperceber-me
que já nem me lembrava dela…
E sim, a vida
tem uma força infinita… Mas nós também…
Inês (&
Alice)